Dois super-poderes necessários para vencer

Como morador da periferia do Rio de Janeiro, convivendo com toda sorte de contradições sociais, com a presença da criminalidade circulando pela vizinhança, serviços públicos precários e o descaso do poder público, depois que eu percebi que a vida era mais do que jogar futebol na rua, soltar pipa e outras brincadeiras que fizeram parte de minha infância, precisei desenvolver alguns super-poderes que há muito habitavam meu imaginário para conseguir fazer a desafiante travessia entre a realidade em que eu vivia e uma outra muito melhor que, pouco a pouco, fui conhecendo sobre sua existência e desejando fazer parte dela.

Se existia um lugar melhor, por que acreditar que ele não seria para mim? Foi justamente para lá que eu decidi ir. No entanto, a travessia longa e perigosa contaria com obstáculos que desafiariam meu brio, autoestima, perseverança e me levaria a muitos questionamentos sobre o mundo que me foi apresentado e o quanto realmente eu estaria ou não encarcerado dentro dele, como o ambiente que me circundava tentava me convencer todos os dias.

Não! Eu tenho escolha e farei o que for necessário, dentro de todos os valores éticos que meus pais me ensinaram. Assim, tomei minha decisão de romper com aquela realidade em que vivia. Depois que começou minha peregrinação em busca de mudar minha realidade, percebi que precisaria lutar com armas com as quais não estava acostumado.

Então, vamos falar da travessia.

Bem, como morava a mais de 60 km do Centro da cidade, eu precisaria, para trabalhar, gastar 4 horas em transportes públicos para ir e voltar do trabalho todos os dias. Ok, vamos encarar. Aliás, quem mora nessas regiões periférica dos grandes centros urbanos se acostuma com esse tipo de “viagem” e lida com isso com naturalidade. Quatro horas por dia significariam o consumo de mais de 1.000 horas dentro do ônibus ou trens por ano, só para ir ao trabalho e voltar para casa. Considerando que um expediente comercial tem a duração de 44 horas por semana, somente pelo tempo de transporte entre minha casa e o trabalho, essas horas dentro do transporte público significariam quase 6 meses de expediente comercial (1.000 horas divididas por 44) . Além desse tempo inacreditável gasto com transporte, as condições da viagem eram um desafio à parte: com os assaltos, brigas, empurra-empurra, viagens pendurado pela porta, filas intermináveis que começavam antes mesmo de o sol dar as caras às 5 da manhã e o desconforto de fazer todo esse trajeto, na maioria das vezes, de pé.

O que estou falando é uma enorme brutalidade, porém parte da realidade de milhões de brasileiros todos os dias nos grandes centros. Apesar de ser um absurdo inacreditável, quando conto para pessoas de fora do Brasil sobre essa fase de minha vida e muitas vezes sou solicitado que conte detalhes de meus primeiros passos, elas não conseguem acreditar. No entanto, para essa massa da periferia, é parte de sua rotina encarar com naturalidade esse sofrimento, alguns até com muito bom humor. Afinal, para fazer a travessia é necessário vencer essa fase até ter condições de poder morar mais perto. De onde vem essa força? Vem de um super-poder especial que esses seres humanos desenvolvem, uma espécie de resiliência sobrenatural que tem a função de mantê-los vivos nesse jogo da vida. Não há escolha. É isso ou morre. Esse é o super-poder bastante raro entre os super-heróis: os Nervos de Aço.

Eu também me lembro que, desde criança, nos desenhos animados sobre ficção científica, ficava fascinado com a ideia de poder transportar meu próprio corpo através da sua desmaterialização e nova materialização em outro lugar. Numa fração de segundos, por minha exclusiva decisão, eu poderia desaparecer e aparecer subitamente em outro lugar.

Só de imaginar, eu sentia uma inexplicável e verdadeira sensação de liberdade de ir e vir. Imagine poder desaparecer daquela aula chata de inglês na escola ou de alguma tarefa indesejada e aparecer onde eu quisesse.

Bem, vou contar um segredo a vocês: para vencer, é preciso ter o poder de se teletransportar. Sim, quando encarei o desafio da travessia, não imaginava o quanto precisaria aprender a usar esse poder de que tanto gostava quando criança quando assistia aos desenhos animados.

Esse poder deve ser usado em situações adversas, quando você deve se teletransportar para um lugar diferente, à frente do seu tempo. Isso mesmo. Não é um teletransporte convencional. É um poder de se teletransportar através do tempo. Ou seja, é um domínio sobre a relação entre o tempo e o espaço.

Por exemplo: no mesmo transporte público, em meio ao caos, você pode, num estalo de dedos, ser teletransportado para outro lugar, mas como disse, também para outro tempo também. Eu, por exemplo, gostava de me teletransportar para meu futuro, quando já teria conquistado meus objetivos e não estaria mais ali dentro. Isso me dava a certeza de que toda aquela adversidade era provisória. Era muito comum, dentro do ônibus, quando ainda estava escuro pela manhã, eu me olhar pelo reflexo da janela e fazer planos, imaginando o resultado que seria gerado pelos meus projetos.

O poder de se teletransportar nada mais é do que um exercício de fé, de acreditar naquilo que você ainda não vê, deixando de lado tudo que está ao seu redor, ao contrário, em muitos casos, usando aquele caos, por pior que ele seja, como uma motivação para superá-lo em vez de cair em autopiedade e lamentações muito frequentes naqueles que estão sendo engolidos por essa areia movediça.

Ao me teletransportar, enxergava com meus olhos o invisível e isso fazia com que eu me sentisse um visitante no caos. Eu estava ali, mas não era dali e passava a não pertencer mais àquele lugar ou condição, ainda que meu corpo estivesse ali alojado temporariamente. Eu pertencia a um outro lugar muito melhor, o que me fortalecia para passar aquela situação provisória.

Construir a certeza de que a provação é provisória só é possível para quem usa esse super-poder de se teletransportar.

Amigo, você tem esse poder. Use-o ou fique preso do outro lado sem poder fazer a travessia, pois, no meio desse longo caminho, não faltarão situações para que você seja engolido pelo buraco negro das impossibilidades e seja contagiado pelo negativismo daqueles que sucumbiram a todas essas adversidades e já se conformaram que a vida é assim mesmo e nada pode ser feito para mudar.

Sim, dá para atravessar e chegar do outro lado. Eu posso dizer uma coisa: vale a pena e sua família agradece.