Algumas experiências morando fora do Brasil

Entre os anos de 2005 e 2006, morei em Sydney, Austrália. Na ocasião, alguns fatores me levaram a decidir que eu e toda minha família nos mudássemos para o outro lado do planeta para passarmos um ano. Na época, minha empresa no Brasil tinha cerca de 100 filiais nas principais capitais do país e mais de 3.000 funcionários. Da Austrália, eu viajava ao Brasil a cada dois meses e acompanhava, todas as semanas, através de meus principais executivos, o andamento da operação através de videoconferências via Skype.

Eu tinha 33 anos, Luciana 30 e os nossos dois filhos tinham 5 e 3 anos de idade. Queríamos uma experiência com toda a família longe de casa, aliás, bem longe, com uma diferença de 13 horas no fuso, quando as nossas tardes do lado de lá aconteciam durante a madrugada no Brasil.

Além desse tempo de qualidade bem pertinho da família, queríamos que todos, inclusive eu, nos dedicássemos a aprimorar nosso inglês. Eu também decidi estudar um pouco, quando iniciei um MBA numa universidade australiana. Na Austrália, você pode transformar sua trajetória empresarial em créditos acadêmicos, o que me deu acesso ao MBA que frequentei por alguns meses.

Com relação à empresa, essa viagem representou um investimento para amadurecer meu time de executivos, para tocarem o negócio sem minha presença no dia a dia da operação. Como um fundador muito atuante na gestão, ter a certeza de que o modelo de negócios que criei era capaz de funcionar sem a minha presença seria uma prova contundente de nossa governança corporativa, o que viria a agregar valor em nossa empresa na hora de eu agregar um fundo de investimento ou vender a companhia.

Aprendi muito nesse período. Conheci como é possível uma sociedade funcionar com seriedade, como é possível ter líderes competentes à frente de uma cidade e de um país. Vi como um planejamento eficiente e sério constrói um projeto vitorioso de um país e forma uma população educada e com um alto nível de consciência cidadã, inclusive em seus valores.

Infelizmente, eu me deparei com minha realidade e com o meu baixíssimo referencial de sociedade, razão pela qual muitas coisas me impressionaram, o que francamente não deveriam, mas o fato de impressionar deflagrava o baixíssimo nível com que eu me apresentava. Vou relatar algumas experiências.

O primeiro choque

Eu e Luciana decidimos levar uma vida simples. Como disse, no Brasil já tínhamos naquela ocasião uma vida muito confortável. Morávamos em Curitiba numa casa de 1.000 m2, onde sete empregados trabalhavam para nos dar assistência em nossa rotina movimentada e repleta de viagens pelo Brasil. No entanto, na Austrália, decidimos morar num apartamento de 150 m2, decidimos não comprarmos um carro e levamos somente uma pessoa para nos ajudar na estrutura doméstica, para termos um pouco mais de liberdade para sairmos à noite, enquanto ela ficava com a crianças.

No MBA, ninguém me conhecia. Eu era o único representante anônimo de um país de terceiro mundo e minhas opiniões não eram muito escutadas inicialmente. Não disse que era empresário com uma empresa com mais de 3.000 funcionários e nem que não precisava trabalhar como garçom nas horas vagas em Sydney para ajudar a pagar os 30 mil dólares do curso. Na hora de fazermos os trabalhos, sentava na praça e comia os mesmos sandubas que os meus colegas. Todos estavam estudando em busca de alcançar uma posição melhor em sua carreira. Em meu caso, já era um empresário consolidado, mas, naquele contexto, tinha que conquistar, do zero, ou melhor, do negativo, como o único sul-americano, a credibilidade de minhas ideias a fim de ser respeitado. Nunca imaginei que o anonimato poderia ser tão interessante.

Um dia, recebemos uma carta da prefeitura. Ela pedia desculpas pela eventual quantidade de poeira que o nosso apartamento poderia estar recebendo por conta de uma obra ao lado do prédio. A carta nos encorajava a passar por aquela fase tendo em vista os benefícios que a obra geraria para toda a comunidade em poucos meses. Custei a acreditar no que li e em como me senti respeitado.

Lá, eu me transportava de ônibus e de trem. No ponto de ônibus, tinha um monitor digital que dizia em quanto tempo o ônibus chegaria no ponto. Nunca atrasava. Até o dia em que descobri que os ônibus eram monitorado por satélite e por isso as projeções que apareciam no monitor eram exatas. O ônibus não tinha cobrador e cada um passava seu ticket num leitor de código de barras para pagar. Não pude evitar de pensar que se fosse no Brasil muitos dariam calote. Eu me senti um homem das cavernas socialmente falando.

Nos trens, isso há 8 anos, cada vagão tinha 2 TVs de plasma, as mais modernas, caríssimas no Brasil na época. Eu logo pensei: como ninguém rouba?

Nos fins de semana, muitas vezes íamos à praia. Sem exagero, a área de banho era cercada por redes de aço para que tubarões não atacassem os banhistas. Num desses passeios em Bondi Beach, sempre colocávamos um cordão em nossos dois filhos, tipo aqueles que soldados usam para sua identificação, para o caso de eles se perderem. Um dia, talvez pela força de uma onda, um dos meninos perdeu o cordão e o pingente. Só percebemos quando chegamos em casa. Mas a surpresa aconteceu quando, 4 dias depois, recebemos uma correspondência. Dentro dela um saquinho com o pingente de nosso filho. Ou seja, alguém achou o pingente que tinha o nosso endereço e se deu ao trabalho de embalá-lo num saquinho, ir até o correio, pagou o envio do pingente para a nossa casa sem sequer se identificar. Fiquei absolutamente confrontado com esse comportamento e percebi que estava diante de algo que realmente nunca tinha conhecido em meu país.

Por que isso me impressionou?

Dentre muitas outras experiências, vou relatar apenas mais uma. Ela aconteceu em 2007, ou seja, um ano depois de termos retornado ao Brasil. Recebi um e-mail da imobiliária onde tinha alugado o apartamento em que moramos em Sydney. O e-mail dizia mais ou menos assim:

“Sr. Flávio, a imobiliária XXXX foi vendida e durante a auditoria dos últimos dois anos detectamos que lhe foram cobrados 15 dias a mais de aluguel no mês de agosto de 2006, o que equivale ao valor de 3,5 mil dólares. Por favor, envie-nos sua conta bancária para que façamos o reembolso desse valor”

O que é isso? pensei. E por que eu me impressiono tanto com isso? Ou seja, se o normal é ser honesto, eu me impressionar com isso é um flagrante do baixíssimo padrão moral que sempre vivi no Brasil e é o reflexo da sociedade que estamos construindo. Na realidade, os líderes de nosso país, em todas as esferas, são o modelo para a nossa sociedade e, lamentavelmente, o exemplo que recebemos não tem sido o mais recomendável.

Você parabenizaria alguém porque escova os dentes todos os dias? Ele mereceria um troféu? Nosso referencial do que é pequeno ou grande, o que deve ser elogiado, ou o que é obrigação e o que é padrão de comportamento ou detestável é a radiografia inconsciente da realidade de nossa sociedade.

Quem são os heróis de nossa sociedade? Quem nós admiramos? Qual é o comportamento que exaltamos: o do esperto ou o do bitolado? Aliás, o que é ser esperto e o que é ser bitolado? Por que a TV dedica tanto tempo, a cada dia, a mostrar mais bundas e exaltar determinados estereótipos sexistas, enquanto nossas maiores mentes pensantes, nossos prodígios, campeões de olimpíadas de matemática e empreendedores brilhantes são esquecidos todos os dias?

Quem é vítima de bullying na escola: os chamados certinhos bitolados ou os malandros espertos que colam na prova? Quem é o esperto: o que paga seus impostos ou quem faz gato-net? Essa inversão de valores presente em todos os setores da sociedade joga o Brasil no porão do mundo, pois com esse comportamento a própria sociedade se destrói e seus resultados continuarão a ser medíocres.

Eu já morei na Venezuela, EUA, Espanha, Inglaterra, Austrália e Portugal. Em cada lugar por onde passei, conheci realidades cotidianas muito distantes das que presenciamos todos os dias em nosso país. Estamos à frente em algumas coisas. Mas, infelizmente, em muito poucas.

Sonho em um dia não me impressionar com o óbvio. Sonho em um dia ter exemplos que venham de cima. Enquanto isso, empreendo, busco colaborar com vocês para que pensem fora da caixinha, tenham a coragem de remar contra a correnteza e aprendam a não dependerem de governos, mas apenas de seus próprios esforços, pois desse jeito, seja com um governo competente ou incompetente, jamais seremos reféns desses vampiros vorazes pelo poder.