Ontem, conversando com um repórter de um importante jornal brasileiro, ele me perguntou qual imagem eu carrego em minha memória sobre minha adolescência. A entrevista foi muito bem conduzida por ele – a propósito um jornalista muito qualificado. De certa forma, ele me levou a refletir sobre isso e cheguei a uma conclusão interessante.
Eu poderia ter em mente que sempre fui muito prestigiado pelos meus pais e parentes, poderia me lembrar de bons amigos ou até de minhas passagem pelo Colégio Naval, de onde até hoje guardo boas recordações. Mas o que descobri que carrego em minha memória sobre este tempo são as viagens que fazia todos os dias pelos transportes públicos do Rio de Janeiro.
Eram momentos de grande sofrimento, pois gastava 4 horas por dia, entre ir e vir da escola e mais adiante do trabalho. No total, foram mais de 5 anos percorrendo pelo menos 30 mil quilômetros. Usando a calculadora, essas 4 horas diárias também podem ser traduzidas em quase 1.000 horas por ano, ou seja, cerca de 40 dias por ano dentro de um transporte coletivo, lotado e presenciando muitos assaltos e as mais mirabolantes situações com as quais um morador da periferia aprende a conviver com naturalidade.
Como saía de casa antes das 6 da manhã, ainda escuro, tinha o hábito, dentro do ônibus, de pé e apertado no meio de dezenas de pessoas, de ficar observado através do reflexo no espelho, a fotografia de minha vida: um adolescente, amassado dentro de um coletivo, com uma mochila cheia de livros, de pé por duas horas, em direção à escola.
Do lado de fora, ao ver essa fotografia lamentável, mas que no entanto se tornou algo muito comum na rotina de milhões de pessoas nos principais centros urbanos brasileiros, que perspectiva mais relevante poderia ser atribuída a esse amontoado de gente amassada?
A memória de minha adolescência sempre me leva a essa minha antiga rotina. É disso que gosto de me lembrar, porque posso me conectar com minha essência, com o que sou, de onde vim e me lembrar de todas as vezes em que usava esse tempo para sonhar e planejar uma mudança de vida.
Mas minha principal razão para manter viva essa memória é preservar a certeza de que qualquer pessoa, por mais desqualificada ou vira-lata que pareça, um “da Silva” qualquer como eu, ou um suburbano sem classe como eu, ou um pobretão sem referencial como eu, ou um filho de gente simples e sem pedigree, pode transformar o caos numa realidade completamente diferente.
Se eu me esqueço de quem eu sou e de onde vim, imediatamente perco a autoridade de lhe dizer que você também é capaz de mudar sua realidade de vida. Basta não sucumbir ao coitadismo.