Passei a minha infância e adolescência na periferia do Rio de Janeiro. Na escola pública, grande parte dos meus amigos eram das favelas Cavalo de Aço e Rebu, além dos amigos do bairro.
Eu não comia a merenda da escola, enquanto, provavelmente, os meus amigos da favela dependiam dela como a principal das suas refeições diárias. Não usava uniformes doados, enquanto os meus amigos da favela recebiam os meus uniformes no final do ano para serem usados por eles no ano seguinte.
Eu era pobre, mas convivia com gente mais pobre do que eu. Meu pai e minha mãe realizavam trabalhos voluntários na Igreja e contavam comigo na sua vocação de servir os mais pobres. Eu era pobre também, mas para os mais pobres do que eu, era visto como rico. Sabia que não era rico, mas como não sentia falta de nada, logo, era rico.
Nunca havia ido à Disney e nem ficava triste por isso. Na verdade, eu não pertencia nem ao grupo social que cogitava essa hipótese. Não frequentava restaurantes, viagens internacionais (e nem nacionais), não conhecia as grifes da moda e nem contava com a possibilidade de ganhar um carro quando fizesse 18 anos de idade.
Peguei avião pela primeira vez aos 21 anos, jantei num restaurante pela primeira vez aos 19 e aprendi a dirigir aos 20, no mesmo ano em que me casei com a Luciana, que tinha 17. Nosso melhor presente de casamento foi uma TV de 14 polegadas usada e a minha mudança inteira coube numa Kombi.
A Luciana pintou o nosso apartamento alugado, arrumou as flores da cerimônia e passamos a primeira noite num motel pago com o dinheiro da gravata picotada e vendida na festa, que serviu coxinha e tubaína. A lua de mel foi em Xerém. O mais caro dessa viagem foi consertar a junta homocinética do Passat 84 que pegamos emprestado para a viagem e que quebrou logo no primeiro dia.
Na primeira noite na nova casa, teve queima de fogos. Não, brincadeira… Teve tiroteiro mesmo; 40 minutos intensos. Era apenas mais uma disputa do tráfico que acontecia quase todos os dias na Zona Oeste do Rio de Janeiro. Armas de todos os calibres cantaram perto da meia-noite. Eu e Luciana, deitados no chão de casa para nos protegermos das balas perdidas, olhávamos um para a cara do outro e, literalmente, ríamos da nossa própria desgraça. Era a primeira noite na nossa casa quase sem móveis, ao lado da mulher com quem eu passaria dias incríveis da minha vida. O tiroteio era apenas um detalhe.
O tempo da nossa casa até o trabalho variava entre 2 e 3 horas, a depender do trânsito na Avenida Brasil. Ahhh, a Avenida Brasil… quantas vezes, apertado dentro de um ônibus lotado, eu olhava para o lado de fora, sabendo que levaria muito tempo ainda para chegar ao trabalho, no centro da cidade, e pensava: “Um dia vou sair daqui, vou mudar de vida…”.
Morava em frente ao ponto final do 396 – Jabour/Largo do São Francisco, na Rua Beirute. Na época, Beirute era palco de uma guerra civil no Líbano. Na minha Beirute, não era muito diferente. Voltando ao ônibus, tinha uma moça chamada Ilka, que era uma veterana no ponto final. Ela meio que dava as ordens por lá. Logo percebi que até amigo oculto no Natal a Ilka era quem organizava entre os passageiros.
Muitos se conheciam por anos, e até décadas, porque pegavam sempre o mesmo ônibus, todos os dias, por anos, para irem para o trabalho. A Ilka pegava aquele ônibus para o centro do Rio há mais de 20 anos. Eu apreciava a alegria de todas aquelas pessoas. Gente guerreira, que passa perrengue e tem sempre um sorriso no rosto. Gente sofrida, que aprendeu a sobreviver a tudo isso sem antidepressivos consumidos por quem tem 500 reais para pagar por hora num psicólogo.
Tenho profunda admiração por gente simples. Eles são fortes… Aprendi isso desde quando vi o exemplo dos meus pais ajudando aos que realmente eram pobres, ou melhor, miseráveis e até passavam fome. Apesar de toda essa admiração, eu pensava: “Eu não quero ser como essa Ilka e passar duas décadas da minha vida dentro desse ônibus. Quero sair daqui”.
Num daqueles dias que tinha um acidente feio na Avenida Brasil, o trânsito se tornava impossível e levávamos mais de 4 horas até chegar ao centro, em pleno verão, dentro do ônibus, às 10h30 da manhã, com uma temperatura de quase 40ºC, nosso ônibus quebrou em Bonsucesso. Eu, de roupa social, sem celular, com visitas marcadas com clientes (lembre-se de que eu vendia curso de inglês), estava todo suado, na calçada de um lugar perigoso, ao lado de dezenas de pessoas esperando o próximo ônibus, que já chegaria cheio. Com sede e já cansado, me pendurei pela porta do próximo ônibus e segui por uns 20 minutos, correndo o risco de me acidentar. Um caos. Nesse dia, minha decisão foi mais enfática: “chega”.
Eu sempre usei esses perrengues para me motivar. Há dois tipos de motivação: conseguir aquilo que queremos e decidir o que NÃO queremos. Nesse dia, eu decidi que faria o que fosse necessário para romper a enorme barreira social que me afastava daquela vida que eu conhecia apenas pela televisão. Em outras palavras, o ser humano se motiva para ter prazer ou para não sofrer.
Nunca fui de reclamar. Aprendi a ser sempre grato, mas também aprendi que CONFORMADO, jamais. Eu estava decidido a não ganhar a FORMA daquele mundo que estava conhecendo ao sair da bolha da escola pública. A vida real era bem pior do que eu imaginava. Porém, eu queria mais, muito mais, e sabia que isso não era pecado.
Ainda não tinha filhos, mas queria algo melhor para eles. Queria dar a eles o que não tive, queria que eles pudessem um dia visitar a Disney, quando fizessem 15 anos. Quem sabe até com um daqueles pacotes parcelados em 36 vezes. Era um sonho bobo, mas talvez representasse um imaginário criado por mim, algo inatingível na minha infância.
Mas o mundo gira. Hoje, a Disney é querida parceira e patrocinadora do meu time aqui em Orlando, onde vivo com a Luciana e 3 filhos que já moraram em 6 países antes mesmo de entrarem na puberdade. Durante os fins de semana, desde pequenos, falei várias vezes: “Vamos à Disney?”. Geralmente eles respondem: “Não, pai. Prefiro fazer isso ou aquilo…”.
Eles não gostam muito de parques (rss). Tudo bem, porque pude dar algo melhor a eles. Mas, na boa, isso para mim não é o suficiente. Isso é o que me mantém por aqui todos esses anos, sempre na expectativa de que algum louco aí do outro lado da tela também mude sua história e que eu possa ter colaborado com essa mudança de alguma maneira.